Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

Fernando Pessoa, “Livro de Versos”

QUE VAGA É ESTA?

Que vaga é esta, que me engole, que me deixa sem ar, sem ver. É alta, enorme, como um enorme muro que vem esmagar-me. Eu sem saber donde, porquê e quando surgiu. Deixo-me afogar. É um afogar em que não morro. Simplesmente parece que fico imobilizado. Enterrado para sempre, mas vivo, de olhos abertos, sem ver, sem ar, e ao mesmo tempo respirando fundo. Não sei quantas pessoas me aparecem, dando-me a mão ou simplesmente não fazendo nada. Não consigo manter as memórias desses momentos. A única coisa que sei é que choro sem poder conseguir parar. Choro sem emitir algum som, algum lamento, algum grito de ajuda. Simplesmente choro. Se alguém pudesse olhar para mim só veria dois pequenos fios de água a desabarem de uns olhos vermelhos. Eu, só sinto as lágrimas. E, finalmente, a vaga passa por mim, deixando-me quase sem vida, mas com a força suficiente para eu me manter na água. Certamente virá outra vaga, tenho quase a certeza disso. E mantenho-me ali, à mercê de um destino que não planeei, um destino possivelmente único. Que tal como eu sou único. Feito de todas as pessoas que foram passando por mim e opinaram qualquer coisa, que me disseram qualquer coisa agradável, ou disseram qualquer coisa que me desfez, que me derrotou por instantes. Um instante que agora associo à vaga que passou por mim, me derrotou e que, mesmo assim, me manteve vivo. Nestas palavras, em forma de texto, pretendi dizer o poder que os outros sempre tiveram em mim. O poder que eu dei aos outros. Sempre. Que me aceitassem, que gostassem de mim, que me compreendessem na minha enorme complexidade, que nem eu sei explicar de forma seguida e coerente. Tenho de fazer intervalos, lembrar-me melhor do que aconteceu. Tenho de sentir as lágrimas tão salgadas, como maré alta. Lembro do começo da minha vergonha, da vontade de ter nascido noutro lugar, com outras pessoas. Com outros pais até, lembro a enorme maldade de pensar nisto. Castigo-me sem saber como posso castigar-me mais. tanta culpa deveria ser impossível ter. Sou um homem banal, sempre me procurei distinguir no que fiz. Quase me matei algumas vezes do exagero onde tropecei. Fiquei sem pais. Algumas vezes aceito isso sem revolta, outras aceito isso com a tristeza de não ter tido tempo para perceber a saudade, para me contarem as histórias dos acontecimentos. Sei que pertenço ao mundo dos negros escravos e ao mundo dos donos desses escravos. Tenho uma alma mestiça, uma alma bipolar. E tenho ansiedade, que tento disfarçar para os outros. Respiro fundo para ver se passa. Parece quando é o tempo em que a vaga acabou de passar por mim. Agora fico por vezes a olhar para o espelho. Vejo o que acabei por me tornar. às vezes gosto, outras penso no que poderia ter sido, se nalgum pequeníssimo momento, num milésimo de segundo, outra coisa tivesse acontecido. Tento ser melhor pessoa, às vezes não sei o que é ser melhor pessoa sem me humilhar a mim mesmo. Tento ver o ponto de vista dos outros e tenho dúvidas do meu próprio ponto de vista, e da quantidade de pontos de vista que já tive sobre tudo o que me rodeia, sobre as mesmas coisas. Cuido um pouco da minha saúde porque tenho medo da morte, da forma como será o meu último dia. Acho que vou ter tantas saudades vossas. Seria impossível viver sem vocês, meus escassos pilares. E será anda mais difícil estar morto e não vos ter jamais. Do Natal deixarei a recordação de alguma coisa, nem que seja do bacalhau, das fatias douradas. A recordação de mim quando estou alegre. Bem-disposto. Em paz com as vagas que nunca param.

NATAL 20222

Semear

Pois meu amor. Eu ando às voltas com a esperança, ou a sua ausência. Onde ainda a encontro. Onde já a perdi. Não é fácil resistir quando o problema é global, sistémico e sem um líder conhecido. Tudo se torna confuso e a sobrevivência torna-se uma arma que me querem fazer usar. Penso onde moram as minhas convicções, talvez sociais-democratas, talvez outra coisa qualquer que já não sei. De ter palpites, de achar qualquer coisa sobre qualquer coisa. De achar que com o meu esforço, o meu trabalho e o meu entusiasmo me poderia destacar. Ir mais longe, ser premiado, ter sucesso, viver bem. Pensava ingenuamente, sei agora, que o mundo caminhava para o bem estar geral, para a democracia e para o respeito pelo próximo. Pensava e ensinei isso. Penso agora que todos tentam safar-se. Isso mesmo. Passar entre os pingos da chuva. Com mais ou menos resistência acabamos por ter fome, frio e a enorme responsabilidade da paternidade. Aí ficamos indecisos sobe a coerência do que se ensina e do que se pratica. Entre os valores e a práxis. Às vezes tudo isto me parece sem sentido, noutras descubro uma nesga de futuro. Vou-me habituando a viver assim. Intranquilo se pensar e irresponsável se não pensar. Deito-me, adormeço e volto a sentir a tua mão na minha testa Sentindo o latejar da vida que ainda temos. Quando acordo, olho sempre para a mesinha de cabeceira. Procuro os teus pinhões. Para semear numa destas tardes.

A CANÇÃO DA VIDA

“Eu não tenho nome;
Sou como a brisa fresca das montanhas.
Não tenho refúgio;
Sou como as águas errantes.
Não tenho santuário, como os deuses obscuros.
Não existo na sombra dos templos profundos…
Não tenho livros sagrados.
Não estou imbuído de tradições.
Não estou no incenso que sobe nos altares,
Nem na pompa das cerimónias.
Não me encontro em imagens esculpidas,
Nem no canto sonoro de uma voz melodiosa.
Não estou acorrentado por teorias,
Nem corrompido por crenças
Não me acho escravizado às religiões,
Nem à devota agonia dos seus sacerdotes.
Não estou iludido pelas filosofias
Nem no poder das suas seitas.
Não sou humilde nem glorioso,
Sou o adorador e o adorado,
Sou livre.
Minha canção é a canção do rio
Que se projeta para o mar aberto,
Correndo, correndo.”

J. Krishnamurti

TESTAMENTO

Ana Luísa Amaral

Vou partir de avião
E o medo das alturas misturado comigo
Faz-me tomar calmantes
E ter sonhos confusos

Se eu morrer
Quero que a minha filha não se esqueça de mim
Que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
E que lhe ofereçam fantasia
Mais que um horário certo
Ou uma cama bem feita

Dêem-lhe amor e ver
Dentro das coisas
Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
Em vez de lhe ensinarem contas de somar
E a descascar batatas

Preparem minha filha para a vida
Se eu morrer de avião
E ficar despegada do meu corpo
E for átomo livre lá no céu

Que se lembre de mim
A minha filha
E mais tarde que diga à sua filha
Que eu voei lá no céu
E fui contentamento deslumbrado
Ao ver na sua casa as contas de somar erradas
E as batatas no saco esquecidas
E íntegras.

Ana Luísa Amaral