Este livro representa uma parte da T. que eu amo. Um pedaço de sal. Temperos. Existem outras partes, mas esta leva-me por um céu que conheço, desconhecendo. Escreves em papel pardo ou de seda, mas desafias sempre. Esse duelo entre o que se ama e o que se possui. Entre a vida e a vidinha. Entre as palavras que levantam o véu e a as palavras que atracam navios. Saia que se despe sem nunca haver entrega. Bruxarias de negros e desertos secos, sem vida. Sem lágrimas sequer. Mares e marés com estrelas de África e bosques que ainda não nasceram. Enterrados ainda. Embriões de pais e mães estéreis, que fecham os olhos quando gritas. Uivos de sobrevivência como pombos em estátuas de areia movediça. Almas penadas. Palavras que são uma das camadas da tua pele que arde e se queima. Que quer ser suave quando a noite se prolonga entre velas. Nas noites quentes em que, finalmente, o silêncio deixa de ser pesado. Sem escorregar para vinganças e olhares de esguelha. E gritas outra vez, sem querer acordar os demónios que vivem connosco.
Somos o que já vivemos e a espectativa do que falta. Projecção de filme num quarto de hotel em segredo. Entre lençóis brancos para disfarçar a dor e a vergonha. Filme mudo sem precisar de legendas. Incompreensível á luz dos deuses. E com um intervalo que é este instante. Que se renova continuamente. Que pára. E quando acaba de parar já avançou. E não acaba. E não tem fim. E nunca chega a parar. E nunca chega a ser. Um juntar de rios. O conhecido e o desconhecido.
Ao fazer esta recolha de palavras escritas por ti, sem qualquer significado na sua sequência, senti-me deslumbrar outra vez por ti. E amar-te também é este deslumbramento. Esta admiração que se quer tocar, provar, sentir, roubar, guardar, olhar, deixar, voar e voltar.
Passaram dois anos. Ou vinte anos. Ou dois dias, duas horas, dois minutos. Dois. Nada disso interessa se me lembrar do gesto que provocou esta escolha. Do olhar e do beijo. Desse confessar o amor com carácter de urgência.
Ambos tínhamos chegado de viagem, mas nunca saberei que ventos do oriente te trouxeram até mim para me salvar. Eu senti, finalmente, que não se pode desperdiçar a água doce e a terra fértil. Larguei o travo azedo de uma solidão vestida de rendas e perfumes. De ondas do mar que me enrolavam e nunca me deixavam chegar a terra. Larguei amarras porque era finalmente possível o barco flutuar se eu quisesse.
Este teu livro termina com uma frase de Pablo Neruda e com folhas em branco. Promete que me escreves. Tu sabes que isso é essencial para os marinheiros. Promete-me, para que eu não me perca de ti mais.
Sempre Teu
M.
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