Parecia cada vez mais cinzento o dia. Mas era só na minha cabeça. Eu sabia que as vozes não existiam, nem os sonhos. Nunca foram reais. Tal como eu tudo me parecia uma fraude. Nunca tinha imaginado ir parar ali. Via-me como se de outra pessoa se tratasse. E não me identificava com ela. Essa pessoa. Personalidade estranha a mim. Parecia-me mais gorda, mais velha, mais sem vontade para fazer as coisas. Mole. Com um desmesurado desânimo nos olhos. Às vezes chorava. Essas eram as melhores vezes. Conseguia identificar tristeza em mim. Mas a maior parte das vezes não. Andava somente. Pensava em coisas que ainda iria fazer. Muitas coisas. Muitas mesmo. Coisas demasiadas, que me deixavam ansioso, rebelde, sonhador, intranquilo. Tudo o que não tinha podido ser até ali, mas que, secretamente, toda a vida, sempre fora. Até tinha sido apreciado por isso. Uma espécie de astúcia, de sexto sentido, de instinto predador, que me tinha feito sempre ganhar até ao momento que dei entrada no Hospital. Primeiro com o coração a não acompanhar essa velocidade. Depois com as ideias sem me darem descanso. A partir desse exacto momento deixei de ser admirado por todos, de ser visionário, passei a ser louco. Desajustado. Inconveniente. E isso foi um processo relativamente rápido. Primeiro surgiram os outros que acharam que as minhas ideias já não faziam sentido. E lutei dias e dias para conseguir expô-las, para que os outros vissem o seu alcance. Depois vieram os custos dessas ideias. Demasiados, fora de qualquer budget aceitável. Apareceram então os meus críticos, as alternativas, os mais jovens, os que trabalhavam por pouco ou quase nada. Os que procuravam um lugar. Só um lugar, mesmo sem interesse pelo projecto. Comecei a ficar cansado. Lutava para não me esquecer dos pormenores. Isso era muito importante. O detalhe. A memória. O pequeno aspecto diferenciador. Fazia e refazia planos. Primeiro no computador. Depois no papel. Em cadernos e agendas que comprei compulsivamente. Depois deixei de escrever e tudo ficou na minha cabeça. Comecei a não ter tempo para escrever, porque as ideias eram demasiadas, eram velozes, consecutivas. Constantes. Tomava comprimidos para dormir, depois comprimidos para me acalmar, depois comprimidos para compensar a comida e outros para a tensão, o colesterol.Comprimidos para despertar, para me aliviar, A concentração era o meu veneno. O meu corpo queria falhar. Ainda tentaram recuperar-me, reintegrar-me, os meus colegas. Eu sabia que em todos havia uma ingratidão que lhes criava desconforto. Mas nada. Nada resultou comigo. Hoje vivo numa ilha, acho que isto é uma ilha. Consegui despojar-me de coisas, de inutilidades, de luxos, mas rodeei-me de ideias antigas. Algumas novas ou repetidas. Não sei. Tenho a sensação que me repito. Que me ouvem por pena. As mágoas visitam-me de vez em quando, mas, cada vez mais, me esqueço da razão da sua existência. Fico tão triste quando me esqueço do que alguma vez ambicionei ser.
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