1
Não falaremos do rochedo sagrado
onde a cidade de Jerusalém foi construída,
nem da pedra mais respeitada da Antiga Grécia
situada em Delfos, no monte Parnaso,
esse Omphalus – umbigo do mundo –
para onde deves dirigir o olhar,
por vezes os passos,
sempre o pensamento.
2
Não falaremos do Três Vezes Hermes
nem do modo como em ouro se transforma
o que não tem valor
– apenas devido à paciência,
à crença e às falsas narrativas.
Falaremos de Bloom
e da sua viagem à Índia.
Um homem que partiu de Lisboa.
3
Não falaremos de heróis que se perderam
em labirintos
nem na demanda do Santo Graal.
(Não se trata aqui de encontrar a imortalidade
mas de dar um certo valor ao que é mortal.)
Não se abrirá uma cova para encontrar o centro do mundo,
nem se procurará em grutas
nem em caminhos da floresta
as visões que os Índios idolatravam.
4
Não se trata aqui de fazer um jejum
no alto da montanha sagrada
para que a fraqueza e os ares elevados
possibilitem tremores e doenças benignas.
Trata-se simplesmente de constatar
como a razão ainda permite
algumas viagens longas.
Falaremos de Bloom.
5
Não iremos admirar de perto o Vesúvio,
nem deitaremos animais
para a cratera de modo a acalmar os elementos.
Não mataremos pela água da juventude eterna,
nem amaldiçoaremos nomes
atirando tábuas com letras malditas
às águas de Bath, em Inglaterra.
Não falaremos das grandes pirâmides de Gizé,
das suas múltiplas passagens secretas
que permitem a entrada ou a fuga dos homens.
6
Não falaremos das ruínas de Stonehenge
ou de Avebury,
nem dos alinhamentos demasiado exactos de pedras
na ilha de Lewis.
Não falaremos desses milagres deixados
um pouco por todo o mundo,
dessas cartas em pedra que os antigos nos enviaram.
Falaremos de um homem, Bloom,
e da sua viagem no início do século XXI.
7
Não falaremos dos terríveis acontecimentos naturais
da história do mundo.
Terramotos e maremotos, ciclones em Bangladesh
tufões nas Caraíbas
– o mundo abana e sofre de incêndios e inundações
desde Noé, pelo menos.
Não falaremos da Pedra Negra em Meca
e das sete voltas que essa pedra exige
que um crente dê em redor da praça.
Falaremos de Bloom e da sua viagem
de Lisboa à Índia.
8
Não falaremos da cidade inca de Machu Pichu
não falaremos das grutas de Lascaux,
nem dos seus desenhos acriançados,
ameaçadores e sérios.
Não falaremos dos cavalos chineses
nem dos seres mitológicos das rochas
em Ontário.
Falaremos de Bloom. E da sua viagem à Índia.
9
Não falaremos do aparecimento súbito
de anões em certas grutas do México,
nem dos penhascos no Colorado
onde dentro da pedra se construíram casas.
Não falaremos de mesas de pé-de-galo
e das periódicas visitas do Além às casas
de cidadãos racionais.
Falaremos de uma viagem à Índia.
E do seu herói, Bloom.
10
Falaremos da hostilidade que Bloom,
o nosso herói,
revelou em relação ao passado,
levantando-se e partindo de Lisboa
numa viagem à Índia, em que procurou sabedoria
e esquecimento.
E falaremos do modo como na viagem
levou um segredo e o trouxe, depois, quase intacto.
(…)
Uma viagem à Índia, Gonçalo M. Tavares (Ed. Caminho)
37.019355
-7.930440