
Que vaga é esta, que me engole, que me deixa sem ar, sem ver. É alta, enorme, como um enorme muro que vem esmagar-me. Eu sem saber donde, porquê e quando surgiu. Deixo-me afogar. É um afogar em que não morro. Simplesmente parece que fico imobilizado. Enterrado para sempre, mas vivo, de olhos abertos, sem ver, sem ar, e ao mesmo tempo respirando fundo. Não sei quantas pessoas me aparecem, dando-me a mão ou simplesmente não fazendo nada. Não consigo manter as memórias desses momentos. A única coisa que sei é que choro sem poder conseguir parar. Choro sem emitir algum som, algum lamento, algum grito de ajuda. Simplesmente choro. Se alguém pudesse olhar para mim só veria dois pequenos fios de água a desabarem de uns olhos vermelhos. Eu, só sinto as lágrimas. E, finalmente, a vaga passa por mim, deixando-me quase sem vida, mas com a força suficiente para eu me manter na água. Certamente virá outra vaga, tenho quase a certeza disso. E mantenho-me ali, à mercê de um destino que não planeei, um destino possivelmente único. Que tal como eu sou único. Feito de todas as pessoas que foram passando por mim e opinaram qualquer coisa, que me disseram qualquer coisa agradável, ou disseram qualquer coisa que me desfez, que me derrotou por instantes. Um instante que agora associo à vaga que passou por mim, me derrotou e que, mesmo assim, me manteve vivo. Nestas palavras, em forma de texto, pretendi dizer o poder que os outros sempre tiveram em mim. O poder que eu dei aos outros. Sempre. Que me aceitassem, que gostassem de mim, que me compreendessem na minha enorme complexidade, que nem eu sei explicar de forma seguida e coerente. Tenho de fazer intervalos, lembrar-me melhor do que aconteceu. Tenho de sentir as lágrimas tão salgadas, como maré alta. Lembro do começo da minha vergonha, da vontade de ter nascido noutro lugar, com outras pessoas. Com outros pais até, lembro a enorme maldade de pensar nisto. Castigo-me sem saber como posso castigar-me mais. tanta culpa deveria ser impossível ter. Sou um homem banal, sempre me procurei distinguir no que fiz. Quase me matei algumas vezes do exagero onde tropecei. Fiquei sem pais. Algumas vezes aceito isso sem revolta, outras aceito isso com a tristeza de não ter tido tempo para perceber a saudade, para me contarem as histórias dos acontecimentos. Sei que pertenço ao mundo dos negros escravos e ao mundo dos donos desses escravos. Tenho uma alma mestiça, uma alma bipolar. E tenho ansiedade, que tento disfarçar para os outros. Respiro fundo para ver se passa. Parece quando é o tempo em que a vaga acabou de passar por mim. Agora fico por vezes a olhar para o espelho. Vejo o que acabei por me tornar. às vezes gosto, outras penso no que poderia ter sido, se nalgum pequeníssimo momento, num milésimo de segundo, outra coisa tivesse acontecido. Tento ser melhor pessoa, às vezes não sei o que é ser melhor pessoa sem me humilhar a mim mesmo. Tento ver o ponto de vista dos outros e tenho dúvidas do meu próprio ponto de vista, e da quantidade de pontos de vista que já tive sobre tudo o que me rodeia, sobre as mesmas coisas. Cuido um pouco da minha saúde porque tenho medo da morte, da forma como será o meu último dia. Acho que vou ter tantas saudades vossas. Seria impossível viver sem vocês, meus escassos pilares. E será anda mais difícil estar morto e não vos ter jamais. Do Natal deixarei a recordação de alguma coisa, nem que seja do bacalhau, das fatias douradas. A recordação de mim quando estou alegre. Bem-disposto. Em paz com as vagas que nunca param.
NATAL 20222















