8 de Setembro de 2014
Quando olhas para mim, meu amor, o que vês? Sei que o tempo altera as pessoas. Ou a probabilidade de as alterar é grande. Mudei muito? Achas-me diferente? Sabes, ultimamente tenho pensado nisso. Qual a diferença entre o que eu penso ser e o que os outros acham que eu sou. Que ilusão de mim próprio? De que forma estou ligado ao meu passado, a esta memória que transporto, os gestos que incorporei? Nem sequer olhaste no outro dia para mim, quando vim do barbeiro. Não reparaste? Nunca mais me perguntaste nada. Nem pediste. Tem cuidado com as correntes-de-ar, meu amor. Este frio faz-te tão mal e o Inverno ainda nem chegou. Cuidar, dar atenção, meiguice, generosidade, fazer o outro feliz. Vou buscar qualquer coisa para te pôr nas costas.
Do passado ao presente existe sempre um fio condutor, uma espécie de registo, de acta escrita em pedacinhos de tempo, de sítios, que ajuda a perceber qual o meu lugar agora. O meu eu com uma vida vivida. O meu envelhecimento, o meu corpo com marcas do tempo, de uma história passada. De desencontros e desilusões. De sorrisos, olhares de pirata, saltos sem paraquedas. Misturas dias com noites, com inocências e esperanças. O despojamento, a entrega, a partilha, a vontade de me expor e de me entregar, lugares de ilhas rodeadas de noites quentes, silêncios feitos de aço e de cristal. Tão obscuros e tão transparentes.
Chego ao dia de hoje e pergunto se a vida com cheiro de utopia faz sentido. A vida imaginada de desejos, de sentimentos, de sensações. Sabes que dia é hoje, meu amor? Queres ver televisão? Conversar? Uma aventura que resulta de querer a plenitude em todas as coisas: dor, desejo, imaginação, esperança, desencanto. Vida em consonância com essa plenitude, com essa dimensão universal.
O objectivo é não perder a inocência, mesmo quando se perde a ingenuidade. Deixar que a vida me surpreenda. Lembras-te que sempre te pedi isso?
Até hoje aprendi já que não há momentos certos para as pessoas fazerem as coisas. Nem em relação ao trabalho, nem em relação ao resto. Nunca há condições ideais para nada na vida. E é nesse sentido que, mesmo os mais calculistas, chegam sempre ao segundo, ao milésimo de segundo, em que, tal como eu, têm de arriscar. Sabias que arriscas-te muito em te apaixonares por mim?
Arriscar com a certeza que se encontra forças, que se encontra meios para ir levando as coisas para diante. Também é isso ser pai. Levar as coisas para a frente. Ser pai tem sido o maior desafio à minha vida. Passei a viver duas vidas. A minha e a de pai. Num milésimo de segundo passamos a descentrar-nos de nós próprios e a vida coloca-nos num sítio diferente. Um sítio tão desgastante como orientador. Um milésimo de segundo. E a bússola passa a apontar para outro sítio que não o norte habitual. E toda a terra e todo o céu se transformaram numa princesa. Numa sereia que passou a viver dentro de cada história que contei. Uma menina a quem passo a dar pedaços da minha vida. Que me trás de volta ao mundo, que me salva dos meus piratas. Que me pede balões só para os largar e os ver subir.
No início, meu amor, não percebeste bem os meus piratas, vestidos de cor-de-rosa. Perfumes baratos, olhos vazios que se disfarçam de decotes grandes. E debitando milhões de palavras sem sentido. Torno-me rei e escravo nessa noite.
Mas manter a inocência torna-se um imperativo, pois a inocência é a capacidade de acreditar que há sempre uma força reservada e que a vida tem surpresas que se revelam régua, esquadro e compasso. Que tudo se resolve. A mesma cadência marca a busca do confronto com os outros e marca o nosso questionamento sobre a relação de nós com o mundo. O outro e o eu.
Sei que nada é certo, tudo é efémero. Isso faz parte do percurso. A generosidade resulta de querer que qualquer coisa me seja devolvida, nem que seja só este espaço para viver, para existir contigo tão longe e ao meu lado.
Se escolhesse um tempo, escolhia aquele em que aprendi a beijar. Em que te percorri o corpo, como um vagabundo em busca de sítio para passar a noite.
Saber envelhecer é conseguir guardar no peito todas as pessoas de quem gostei. Sei que não fazes isso porque não podes, meu amor. Mas, nos raros momentos em que me lembro que nunca exististe, consigo imaginar o brilho dos teus olhos a olharem os meus. Também podia escolher esse tempo, esse hino à transgressão, esse gesto de te tocar onde antes ninguém te tinha tocado. Queres que apague a televisão, meu amor? Queres ir descansar?
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