Dois

Prosas e Poesias, Cerejas e Mares

SOLIDÃO

 

Na minha história aparece uma velha que não deve ter mais de quarenta anos. Trabalha num museu e transporta uma tristeza tão grande que apetece perguntar porquê. Eu frequentava aquele museu porque ficava perto da minha casa. Tratava-se de um museu de arte contemporânea. Um antigo palácio pombalino, restaurado, que contrastava de forma suave com a rebeldia das esculturas. Um jardim não muito grande, com uma fonte onde estava uma sereia, de cujas mãos jorrava água continuamente. Essa fonte transmitia-me sempre uma ideia de abandono. Tudo parecia ter sido restaurado menos a fonte. O musgo verde e a cor enegrecida do mármore tornavam aquela fonte na coisa que mais surpreendia naquele jardim. Mas o local mais importante, nesta história, era o restaurante. Simpático, como é costume dizer dos sítios e das pessoas. E relativamente barato. Tinha um toque francês, as empregadas de avental preto, muito louras e de sotaque estrangeiro. A comida era servida em pratos grandes, mas em doses pequenas, tornando mais preciosa cada dose. Cada prato tinha sempre um detalhe, um pequeno molhe de ervas frescas, um traço de azeite balsâmico ou monho de ostra, um pouco de folhas de cebolinho cortado fininho, uma tosta com um improvável conjunto, como ovas de sardinha com doce de figo. Um detalhe que, como em tudo, fazia a diferença. Surpreendia como a fonte no jardim. Tornava especial o lugar e o tempo que aí se passava. Sempre doses pequenas, que não me provocavam sono depois de as comer. Era nesse restaurante que aparecia a velha.

A velha, aquela velha, fazia esquecer-me a minha própria tristeza, ao imaginar as razões que poderiam ter levado aquele rosto, feito de sulcos rasgados por lágrimas, de silêncios, de uma vida que eu sentia despedaçada. Sentia-se isso, ou pelo menos eu sentia isso, quando de forma discreta a observava, reparava nos seus cabelos, que apesar de uma beleza natural terminavam secos, de forma desalinhada, como raízes fora da terra. Reparava nas suas mãos tão velhas de tanto fazer e sobretudo os seus olhos. Os olhos eram um mundo inteiro. Adivinhava-se que tinham sido radiantes de luz, adivinhava-se todo o passado e tornavam, para mim, esta velha, numa personagem de romance. Numa fantasia que preenchia o meu espaço solitário que paradoxalmente procurava e ao mesmo tempo queria acabar. Quando eu olhava para esta velha de quarenta e poucos anos, que trabalhava num restaurante de um museu perto de minha casa, ficava quase sempre colado em palavras. Imobilizado pelo poema. Buscava palavras que descrevessem aquilo que eu imaginava poder descrever aquela mulher velha. Reparava que o seu corpo não correspondia à cara ou às mãos. Era magro, com uma cintura que deixava adivinhar desejo. O meu desejo. Não sei se o meu desejo pelo seu corpo ou o desejo de que aquele corpo me desejasse. Mas isso tudo já pertencia ao meu universo secreto, uma tentativa de querer construir uma história.

Para além daquilo que observava e daquilo que imaginava, eu precisava de um passado que pudesse ser atribuído aquela mulher. Não sabia como fazê-lo. Ou até sabia, mas não sei porquê, havia uma espécie de pudor que não me permitia avançar nesse sentido. Isso seria muito desleal para com aquela mulher que me acompanhava, que me oferecia sem o saber, o desejo carnal das minhas visitas ao museu. A parte mais ilógica da minha erudição museológica resumia-se a uma fantasia surpreendente, o desejo de possuir aquela velha nas minhas noites e dias em que tudo me parecia sem interesse, sem nenhum valor. Assim, ela foi-se tornando o lado básico, bruto, deslumbrante, charmoso, enamorado, apaixonado da minha existência vazia. Ou melhor, da minha existência intelectual fantástica e humanamente insuportável. Nas alturas em que não me suportava fechava-me, normalmente no meu quarto. Fechava a janela e entrava numa espécie de noite infinita em que o álcool, o tabaco, o papel, as palavras e todo o meu mundo entravam numa convulsão de emoções. Nessas alturas não me era difícil chorar, por pena de mim, não me era difícil a revolta pelo que me tornara, não era difícil a raiva, por não ter vontade de ter vontade. Nesses dias que não tinham horas tudo me era permitido. Comia muito, dormia muito, escrevia muito e sobretudo sofria muito. Eram momentos difíceis porque eram inevitáveis. Não controlava quando eles apareciam ou quando eles acabavam. Lembro-me que a única visita que imaginava receber era a da velha do museu. Mas nessas visitas ela não era velha, nem as suas mão ou cabelo ou olhos eram como os que eu via no museu. Tudo era radiante, com luz, com uma vida que me empurrava ainda mais para a minha escuridão do quarto. Estranha visita aquela. Deixava-me numa espécie de tempo dominado pelo sexo. Com ela. As ideias na minha cabeça eram repetidas, demasiado velozes para eu sequer as entender. Tomava duches muito frios ou muito quentes, para fazer parar aquelas elipses cerebrais, sentia-me mal, a implodir. Eu não era eu, porque não me conseguia controlar, embora o meu corpo estivesse cada vez mais imóvel. Em transe. Um espirito errante. Uma alma penada. Uma barca no Inferno. Incrível é a forma como me lembro desses tempos. Com uma nitidez demasiada, para que eu possa pensar que tudo era inventado, que não tinha havido visitas da velha, que aqui afinal era nova, que não conseguia parar de ter ideias sem qualquer lógica que eu entendesse, que toda aquela viagem acontecia num minúsculo quarto húmido alugado por mim em Lisboa, no dia em que descobri que nada valia a pena, para além dos meus livros, das minhas histórias inacabadas e medíocres e das visitas frequentes ao mesmo museu. Sempre o mesmo museu, que já não precisava de descobrir porque me era familiar, porque conhecia bem todo o caminho, o jardim, a fonte, o restaurante e a velha de quarenta e tal anos.

Um dia, talvez passados uns três anos de visitas ao museu, ganhei coragem para perguntar o nome àquela velha, que às vezes era nova. Podia dizer-me o seu nome, para me ser mais fácil agradecer-lhe quando me trás o café e o copo-de-água? Ana. Belo nome, simples de decorar, curto. Mas tão vulgar… que gostava de ter outro, ou juntá-lo a outro mais distinto.  Veja, com imaginação até pode ficar Ná e passa a ser chique… Amanhã passo a chamar-lhe Ná. Posso? Pode, mas não prometo lembrar-me que esse nome é o meu. Tantos anos a ser Ana e agora Ná. Veremos.

No dia seguinte não fui ao museu. Tive vergonha, medo que se começasse a pensar que eu estava apaixonado pela Ana, ou Ná, ou velha que agora era nova. Também não fui no dia depois do dia seguinte, nem nessa semana, nem nesse ano. Voltei passados dois anos.

Usava agora barba, que me dava um ar de velho. O velho agora era eu. Abri a porta de vidro do restaurante. Devagar, apenas com as pontas dos dedos da mão direita, suave para não surpreender, para quase não ser observado. Segui em passo de leopardo para a mesa de que gostava. Ao canto, perto da janela que dava para o jardim da biblioteca e com uma ficha eléctrica ao lado. Sentei-me. Respirei fundo e levantei os olhos para a sala. Varria com o meu olhar. Procurava Ana. Nesse primeiro olhar não obtive qualquer imagem de alguém que fosse a Ana. Olá bem-vindo, o que deseja? Um café, por favor. E um copo-de-água. O café em chávena fria, por favor. Duas vezes por favor e zero imagens da Ana. Vou perguntar quando vier o café. Desculpe, há uns tempos trabalhava aqui uma colega sua chamada Ana. Ainda cá trabalha? Não conheço ninguém com esse nome que trabalhe aqui. Sou só eu e a Ná. E ela hoje está de folga. É dia de Natal, como sabe, temos pouquíssimos fregueses. Mas talvez o meu patrão saiba. Quer que o chame?

A Ana com este nome? Ou outra Ana? Será que o adoptou por mim? De súbito imaginei todo o tempo que passou desde a última vez que tinha estado no restaurante. Como terá sido a vida de Ana? Tem namorado? Casou? Deixou de ser velha finalmente? Quanto mais imaginava como seria o presente, mais consciência ia tendo do meu passado. Uma lástima para empregar a palavra correcta. Um passado, sem nada para contar, não existe. E se não existe passado, não existe história e não existe vida. A vida não é mais que uma história. Uma história com quase tudo. Esta tem nascimento, alegria, dor, prazer, amizade, silêncio, amor, sorriso, destino, mistério abraço, mil e uma noites e mil e uma palavras mágicas, Natal.

CONTINUA…CONTIGO A ESCREVER, A ARRISCAR, A SALVAR ESTA HISTÓRIA DA BANALIDADE COM QUE CHEGOU AQUI.

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Uma resposta a “Um Conto De Natal estilo P [Piroso]”

  1. Avatar de Ana
    Ana

    Piroso? O P é mais de Promessa 🙂 Promete ser um bom conto de Natal! E o resto, é para quando?

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