Dois

Prosas e Poesias, Cerejas e Mares

TheKiss_AugusteRodin

“O Beijo”, Auguste Rodin

Meu amor, deixa que o tempo que uma lágrima demora a cair seja suficiente para me esqueceres. Nem mais nem menos. Um fino fio de água salgada que, ao terminar o seu percurso, limparás com a palma da mão. Esfregando a derradeira sombra clandestina, num movimento de frente para trás, tentando que esse pedaço de tristeza migre para um terreno de antigas memórias. E desejarás não voltar mais a esse tempo. Seguirás como sempre o fizeste, pela estrada difícil do poema, do sol. Bailarás mais, voltarás a rir, e aos poucos uma luz irá instalar-se em ti. E é nessa altura, e só nessa, que concluirás que o amor é um tesouro misterioso de contar, de explicar. Os mais próximos de ti notaram que ficaste diferente. De uma volúpia que o teu corpo não pode negar. Nem sequer disfarçar. Depois de toda a tua vida redopiar, como uma luta de corpos quentes, existe sempre a tempestade das palavras. Tenta que elas não te dominem. Pensa-as, como armas, que não queres usar. Porque doem demasiado quando são ditas e ainda mais quando não o são.

Houve um dia que te perguntei se serias capaz de nunca me perguntar pelo meu passado. Fazer do presente o início do tempo. E no dia seguinte voltar a ser o início, e nos dias seguintes sempre o mesmo. Um eterno começar com o que isso teria de bom e de terrível. Encanto, descoberta, novidade, fascínio, uma inquietude que só os amantes sabem ter. Mas ao mesmo tempo a gigantesca fragilidade de não se construir uma história, juntar momentos, recordar, perceber a origem do gesto, entender em profundidade o ingénuo batimento cardíaco, que uma vez e numa fração de segundos aconteceu, e desde aí, o rumo para sul passou a ser por outro caminho. Outro segmento de reta. Respondeste que sim. Mas logo de seguida perguntaste-me porque não era feliz agora. Acho que te respondi que não sabia Acho que foi a última vez que falei. Que te vi. Agora deu-me para evitar as palavras como se evitam os vícios. Um dia de cada vez. Como alma que se vai rasgando, o azul a desbotar.

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Uma resposta a “O Beijo”

  1. Avatar de Maria Carlos
    Maria Carlos

    Lindo. Também o título. A não evidente relação com o texto fez-me sorrir 🙂 Texto que são dois, também com pouca relação aparente. Apetece-me parar apenas no primeiro. Por ora. Talvez para nem dizer nada. Dizer o quê? Já conta a história. Pode ser presunção mas alguns diriam …. a minha. Obrigada pela leitura e pela passagem a limpo, com lápis de cor, de linhas que via tão escuras, tão amachucadas.

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